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Reação de Leonardo Boff ao meu texto Desordem e Retrocesso


Reação de Leonardo Boff ao meu texto Desordem e Retrocesso

Gente,

Na sua imensa generosidade, Leonardo vez em quando reage aos meus textos. Ele me enviou uma reação ao texto Desordem e Retrocesso, mas é muito mais que um comentário, é uma visão de mundo que pode nos ajudar muito nessa crise de civilizacional que atinge o mundo e o Brasil. Pedi licença para replicar e, é claro, ele permitiu. Segue, então, a reação abaixo.

Malvezzi (Gogó)

Caro amigo-irmão Gogó

Seus textos refletem sempre de forma pertinente sobre temas da atualidade. E folgamos que eles sejam difundidos e nos ajudam a refletir e a aprofundar as questões. É o que tentarei fazer agora, coisa que não receio fazê-lo no blog e no facebook (que aliás nunca olho, prefiro o twitter).

Penso no seguinte:

A situação do mundo mudou totalmente com a planetização (conceito mais civilizatório) e com a globalização (conceito mais econômico).

Não há dúvida de que há uma Casa Comum sobre a qual e dentro da qual todos se situam. Permanecem as identidades nacionais com suas marcas históricas mas dentro de uma convergência na diversidade: todos devem encontrar seu lugar dentro desta Casa Comum.

A meu ver, vigoram duas tendências básicas: a globalização “a secas” sob a hegemonia econômica das grandes corporações mas tendo por trás um potência ou militar (USA) ou econômica (China). É marcada pela homogeneização de todos os processos, dito numa linguagem rasteira, por uma hamburguerização do mundo. O mesmo hambúrguer com a mesma fórmula é consumido nos USA, na Rússia, no Japão, no Brasil e na China. E outra tendência é  multipolarização: luta-se por vários pólos de poder, com vários centros decisórios mas todos dentro do mesmo planeta Terra, uno, complexo, ameaçado e doente, não importa.

Agora a disputa é por um único pólo que procura se impor a todos. O “America first” de Trump significa: “só a América”. Só ela tem interesses globais e se arroga o direito de intervir lá onde seus interesses são ameaçados ou podem ser expandidos (caso da Venezuela). Só ela pode passar por cima de todas as convenções e tratados internacionais. Só ela pode fazer guerras diretas ou por delegação: pagam mercenários ou obrigam outros países a fazerem a guerra por eles, como queriam que o Brasil fizesse contra a Venezuela (a população norte-americana tem horror em ver soldados deles mortos e enterrados no seu país; os cadáveres são levados para a imensa base militar norte-americana em Munique, lá preparados e levados aos USA e enterrados de madrugada sem ninguém saber, nem os familiares que posteriormente serão comunicados).

A estratégia dos EUA sempre presente em sua história mas radicalizada depois do atentado às Torres Gêmeas, é garantir a hegemonia mundial pelos meios de destruição em massa em primeiro lugar (podem matar todo mundo) e depois pela economia, pelas artes (Holywood desempenha grande função nisso) e pela ideologia que é uma forma de guerra branda mas efetiva por conquistar mentes e corações pela via simbólica, pelo imaginário, pelos símbolos de prazer e de poder.

O grande meio de dominação é pela economia de cariz capitalista neo-liberal. Este tem que ser imposto a todo mundo (a China deixou-se tomar por ele para se fortalecer economicamente). Isso é feito pelas grandes corporações globalizadas e por seus aliados nacionais. Essa é  grande arma, pois a outra, a bélica, é um espantalho pois pode destruir a todos, inclusive quem as usa (princípio de auto-destruição) mas serve como uma espada de Dâmocles. Como diz Chomsky nunca a segurança é total, pode um bomba se desarticular internamente e sair pelo espaço e causa uma hecatombe, não só uma, mas várias delas, coisa que, segundo ele, quase ocorreu. Ou um louco como Trump ou o “homem da bomba” da Coreia de Norte que pode iniciar uma guerra de destruição massiva da biosfera e assim pôr em risco o sistema-vida e o sistema-civilização.

Quem ganhar a corrida da inovação tecnológica, especialmente, militar mas também econômica, ganha a corrida pela hegemonia mundial. Por isso, segundo nos confessava Gorbachev numa das reuniões da Carta da Terra, nunca se esteve  fabricando e vendendo armas como agora, muito mais que no tempo da guerra-fria. É um imenso negócio financeiro e um desafio à tecnociência para inventar mais e mais meios letais (a absoluta irracionalidade de nossa razão moderna que implica o eventual  auto-suicídio).

Que tem a ver tudo isso com o Brasil e com a atual situação política e econômica? Tem tudo a ver e isso foi intuído por Celso Furtado na última fase de sua vida (cf. Brasil: a construção interrompida e o Longo Amanhecer). O exército que era nacionalista e parte da oligarquia que também era,  deixaram de sê-lo. Fizeram e fazem o seguinte argumento:

Não temos chance nenhuma de ser uma grande nação, embora tenhamos todas as condições objetivas para isso. Chegamos atrasados, não temos meios de concorrer em nenhum campo decisivo onde se joga  a hegemonia mundial. Fomos colônias e nos resta deixarmos ser recolonizados desde que nós (a classes endinheiradas e o estamento militar) tenham benefícios nessa adesão. Trata-se de se incorporar ao mais forte, no caso, aos EUA, com sócios menores e agregados. Mas faremos parte do grande jogo e teremos as vantagens que  isso nos propicia, não ao povo em geral, pois esse é carvão a ser consumido no processo produtivo ou passa da dependência para a prescindência. Não contam. São zeros econômicos. Pouco produzem e não consomem quase nada. Não interessam ao atual sistema assentado sobre a super-produção e o super-consumo. São descartáveis, antes um empecilho para o desenvolvimento que é  altamente excludente.

Qual a mudança que ocorreu no Brasil nos últimos anos? A alta cúpula do exército, os generais que têm tropas, não os aposentados que para nada contam, aceitaram essa tese. Deixaram de ser nacionalistas. Querem uma adesão irrestrita ao império mundial norte-americano com a base que o sustenta que é o neo-liberalismo econômico. A parte de defesa, eles, os norte-americanos cuidam com seus arsenais distribuídos em 800 bases pelo mundo todo. Importa nos alinhar às estratégias dos grande sistema, especialmente impondo o modo de produção capitalista radical (ultra-neo-liberal). É o que querem apoiando o ministro Guedes da Fazenda. Alguém viu algum militar fazendo alguma crítica às medidas econômicas? Eles estão de acordo.

Com Bolsonaro o Brasil foi ocupado pelos militares. Por detrás dele estão os generais de tropa,bem coesos e com mentalidade corporativa. Alguns erráticos que fazem críticas e pensam ainda no Brasil-nação são poucos mas não criam nenhum movimento. Estão desarticulados.

O objetivo é destruir tudo aquilo que nos faz pais-nação: a indústria deve entrar num ritmo lento e ser substituída pelas importações, as instituições com ideais democráticos e nacionalistas, desmontadas, as universidades liquidadas e dar lugar a universidades privadas, associadas às grandes empresas que precisam de quadros formados nessas universidades para poderem funcionar. As pequenas brigas internas entre Olavo de Carvalho  e os militares, entre os/as olavetes e bolsonaristas não significam praticamente nada em termos de projeto de fundo. Tanto o grupo de Olavo de Carvalho, o ex-capitão Jair e filhos são pelo neo-liberalismo desbragado, violento, incivilizados. Os militares são pelo mesmo neo-liberalismo mas com ares de educação e civilidade, inspiradores de confiança.Evitam o debate e a linguagem vulgar. Mas ambos têm o mesmo projeto básico: alinhar-se á lógica imperial e acolher o capitalismo neo-liberal. Não temos, dizem, outra alternativa. Ou dependeremos dos EUA ou seremos engolidos pela China, o contraente da nova guerra-fria entre EUA e a China.

Por isso, os grupos progressistas que pensam como eu e outros numa “refundação” do Brasil e com o “não prolongamento da dependência” soa para eles como um discurso de loucos, de sonhadores, de gente alienada,  fora do curso que a história nos impõe.

Penso que esta, para mim, é a grande realidade que nos aflige e frente à qual estamos tateando nas formas de como enfrentá-la.

Vejo duas possibilidades:

  • Uma ecológica: todos, dentro de poucos anos, serão atingidos por uma catástrofe sócio-ecológica, advertida continuamente pelos melhores cientistas, e então ninguém será poupado e o sistema econômico vigente se arruinaria. Sua base de sustentação a exploração da natureza e dos seres humanos não seria mais dada. Estaríamos todos atingidos, ricos e pobres. Deveríamos pensar num plano Marshall mundial para resgatar o que restou da civilização e restaurar a vitalidade da Mãe Terra. Ninguém pensa nessa modalidade. Eu penso e mais, até acho que quem vai destruir a ordem do capital com sua cultura anti-vida não somos nós, nem a escola de Frankfurt,nem os novos pensadores críticos vindos do Leste europeu. Será a própria Terra viva que não quer mais sobre ela seres que ameaçam todos os demais, os oprimem e matam. Estes somos nós, a espécie humana, o Satã da Terra.
  • Outra seria uma massiva manifestação popular, um tsunami de gente nas ruas, protestando e rejeitando esse modelo e acuando os generais de tropa, desmascarando-os como vendilhões e traidores da pátria de tal forma que eles começariam a se dividir internamente tomar partido. Os políticos lentamente adeririam pois não veriam outra alternativa. Desta forma poderia surgir um movimento alternativo e contrário à ordem vigente. Haveria muita violência de ambos os lados. Não seria descartada uma intervenção norte-americana, já que seus interesses são globais e especialmente visando a Amazônia. Resta saber se a China tolerará esta intervenção. Ela poderá não ficar indiferente. Abriria uma frente de luta, associada a partes do nosso exército que despertou e com a massa do povo nas ruas. Teríamos uma Síria no Brasil e na América Latina. O cenário é sombrio mas não impossível nem improvável, ainda mais que a irracionalidade do poder hegemônico central nos EUA está ganhando uma forma perigosamente patológica, especialmente o grupo que na Departamento de Justiça (junto com outras instâncias do Pentágono e da CIA) elabora as estratégias globais de dominação imperial do mundo. Alguns são falcões e não temem o uso de armas nucleares pequenas e médias com pouco poder de destruição mas com alto poder de irradiação de partículas atômicas. Como em Chernobyl, as regiões afetadas ficarão  por 20-30 anos inabitáveis.
  • São cenários apocalípticos. Quanto mais leio os profetas e as profecias de Jesus nos evangelhos, mais vejo como num painel a nossa realidade. Estaremos próximos do fim? Ou do novo céu e da nova Terra? Mas estes, segundo o Apocalipse, descem do céu. Eu creio que Deus tem o poder de tirar da destruição uma nova humanidade que habitará numa Terra de justiça, de fraternidade e de comensalidade. Na palavra menos utópica de Paulo Freire, numa Terra menos malvada onde não seja tão difícil o amor.

Chega de tristeza e que a coragem e a iluminação do Spiritus Creator nunca nos falte.

Abraço a todos e boa reflexão.

lboff