O BRASIL DEPOIS DAS ELEIÇÕES.
Entrevista concedida a Marianna Micheluzzi, publicado originalmente em JAMBO ÁFRICA.
( http://marianna06.typepad.com/ )
- O que importa para o fato de que, apesar da vitória oficial de Lula, os bolsonaristas não dão a paz e ainda continuam com protestos e violência no país?
São muitos os fatores que mantêm essa parcela da população nas ruas. Eu cito apenas alguns que me parecem os mais fundamentais:
Primeiro, há uma ideologia poderosa no bolsonarismo, claramente inspirada no nazifascismo, articulada com a extrema direita global, alimentada pelas redes sociais, que defende valores há muito tempo enraizados na alma de grande parte da população brasileira. Eles se baseiam sobretudo na área dos costumes: família, pátria e Deus. Claro, tudo dito de forma muito hipócrita e manipulada por estrategistas de marketing, como a Analitica de Steve Bannon, mas que encontram eco no inconsciente brasileiro. Ao identificar Lula como ladrão, abortista, comunista etc., essas pessoas se veem representadas nessa ideologia. Por outro lado, não conseguem perceber o comportamento genocida do atual presidente e a hipocrisia no comportamento pessoal e familiar de seus representantes. Essa ideologia é alimentada dentro das igrejas neopentecostais, tanto de origem católica como evangélica. Muitas igrejas se transformaram em comitês eleitorais. Eu digo que se transformaram em “currais eleitorais”, já que o povo foi literalmente transformado em “rebanho de ovelhas”.
Segundo, há uma dimensão mais profunda que ainda precisa ser estudada. O maior partido nazista fora da Alemanha estava no Brasil no pós-guerra. Hoje há no Brasil mais de 500 células neonazistas, segundo estudos recentes. Muitos nazistas vieram se refugiar no Cone Sul da América Latina no pós-guerra, sobretudo alemães, croatas e poloneses. Então, além do partido oficial, parece haver um cultivo dos ideais nazifascistas dentro das próprias famílias. Ainda são dados empíricos, mas pessoas da região Sul do Brasil estão com muitas dificuldades com seus familiares e amigos. De repente, aparecem defendendo valores indefensáveis como a supremacia branca, o ódio aos nordestinos, à população LGBT+, aos índios, aos negros, assim por diante. E são pessoas comuns que conviviam pacificamente com todos até pouco tempo atrás.
Terceiro, muita gente está recebendo dinheiro de empresários e políticos para ficar nas ruas, enquanto os organizadores ficam em resorts caros, vão para Miami e estão no Qatar assistindo os jogos da Copa do Mundo.
- Você acha que essas manifestações vão acabar? Quem está por trás disso (grandes fazendeiros e pecuaristas locais, ou seja, aquela metade do Brasil que não votou em Lula) eles se resignarão facilmente? Ou devemos esperar o pior?
O Brasil jamais será o mesmo. Sempre fomos divididos em classes profundas. Esse país tem origem escravagista, do domínio dos brancos sobre as populações indígenas e negras. O racismo no Brasil é estrutural, não apenas cultural ou pontual. Porém, essa é uma opinião minha, dessa vez dividiram nossa alma. Alguns vão dizer que sempre foi assim, que agora apenas se manifestou essa divisão íntima. Pode ser, mas agora é mais grave. Há um ódio latente na sociedade brasileira como nunca vimos. Esse ódio foi trabalhado pela grande mídia, agora pelas redes sociais e cultivada silenciosamente pelos interesses do grande capital. Houve mudanças profundas na legislação trabalhista, na área da educação, da saúde, da cultura, do ambiente e, sobretudo, no campo religioso. O Brasil católico, tão criticado, vai se tornando evangélico neopentecostal, tanto de igrejas evangélicas como de movimentos católicos. O resultado é uma país mais esgarçado na sua alma, na baixa solidariedade social, com aumento dos preconceitos e do ódio. O Brasil de pouco tempo atrás não existe mais e nunca mais será o mesmo. O que espero é que realmente superemos a hipocrisia socioambiental, que os problemas profundos apareçam e que sejamos capazes de criar um outro país, em bases mais reais de justiça e inclusão. O nazifascismo terá que ser combatido abertamente na mídia, nas redes sociais, nas escolas, na cultura, nas igrejas ainda cristãs, e se for o caso, tem que ser reprimido para não ganhar asas. O melhor desse processo todo – é meu pensamento – foi que a maior parte do povo brasileiro optou pela democracia nessas eleições. Porém, grande parte continua bolsonarista.
Sim, os maiores financiadores do bolsonarismo são empresários ligados ao agronegócio, que recebe cerca de 340 bilhões de reais do governo federal todos os anos, não paga imposto de exportação da soja, carne etc., e ainda depreda a Amazônia, o Cerrado e outros biomas brasileiros para cultivar suas monoculturas. Mas, também empresários de outras áreas financiaram o bolsonarismo. Há ainda o braço armado de militares e polícias que foram aparelhados pelo governo de plantão.
- Que perigos reais o governo Lula corre, na sua opinião, assim que entra em vigor? Refiro-me também às alianças políticas feitas para obter a maioria e derrotar o adversário. Eles o apoiarão com lealdade? Ou poderia haver mudanças de curso, ligadas como sempre ao ganho pessoal?
Essa aliança ampla é um risco e Lula sabe disso, mas não tinha como ser diferente. O bolsonarismo aparelhou o Estado Brasileiro a seu favor, em todas as dimensões. O cálculo mais recente é que gastaram cerca de R$ 350 bilhões de dinheiro público na campanha eleitoral, por um mecanismo chamado de “orçamento secreto”. O absurdo está no próprio nome, já que fizeram um orçamento secreto com o dinheiro público. Lula é muito experiente e sagaz, sabia que o jogo eleitoral seria pesado e desonesto. Então, para ganhar, tinha que formar uma ampla aliança. Ele é muito hábil nessas articulações, mas sabe dos riscos que corre com tantos aliados que até ontem estavam com Bolsonaro.
- São tantos os problemas sociais a enfrentar (casa, família pobre, falta de trabalho, escola, saúde) será que Lula vai conseguir, se não para resolver, pelo menos para melhorar um pouco a situação? De quem ele deve tomar cuidado para não cair em alguma nova armadilha armada por seus adversários políticos de longa data?
Os problemas são imensos. O atual presidente, na campanha eleitoral passada, dizia que o Brasil precisaria “retroceder uns 50 anos”. Isso mesmo, o propósito era retroceder, voltar para a barriga do Regime Militar, cortar direitos conquistados, destruir a legislação trabalhista, da saúde, da educação, do ambiente, o combate à fome, assim por diante. E ele procedeu dessa forma. Então, sequer sabemos como estão as políticas e os recursos para essa reorganização do país. Nem mesmo sabemos como ficará o orçamento público para o ano que vem. É o que está sendo discutido nessa transição, ao menos garantir o recurso para o programa Bolsa Família – deve voltar a se chamar assim novamente – para que as pessoas ao menos tenham dinheiro para comprar a comida, aqueles que estão literalmente passando fome. E como disse acima, o jogo é bruto, muitos aliados não são de confiança, seguem junto até onde interessar. Mas, Lula é hábil e decidido, em pouco tempo ele vai recolocar o país em novos caminhos. O tempo da destruição do país passou, agora estaremos na reconstrução. Uma meme na internet sintetiza bem o momento que vivemos: “não estamos entrando no paraíso, estamos fechando as portas do inferno”.
- Os povos indígenas realmente terão alguma representatividade significativa? Algo mudará também para os afro-brasileiros? Para os quilombolas?
Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Lula quer criar uma espécie de ministério dos “Povos Originários”, com representações indígenas e de comunidades tradicionais, como os Quilombolas. Isso é inédito nesse país. Foram eleitas cerca de seis representações parlamentares dos indígenas. Nunca foram tantos, a grande maioria jovens mulheres, inteligentes, preparadas, que rodam o mundo defendendo as causas de seus povos. É um momento novo, mas é também o desdobramento de tantas lutas históricas desses povos.
- A violência policial contra cidadãos indefesos, especialmente os negros e pobres, será reduzida? É possível pensar que algo vai mudar? Em suma, podemos ter um retorno à democracia no Brasil?
A polícia foi uma das instituições do Estado que o bolsonarismo aparelhou. Nossa polícia nunca foi tão nazifascista, principalmente a Polícia Rodoviária Federal. Eles chegaram a bloquear o transporte público de petistas que iriam votar em várias regiões do país, supondo que ali estavam eleitores de Lula. Não vai ser fácil, mas o propósito e desaparelhar a polícia e recolocá-la no seu devido lugar constitucional.
Da mesma forma as Forças Armadas. Ficou difícil saber quem se manteve nos parâmetros constitucionais e quantos militares estavam na sanha golpista. É uma tarefa delicada do governo Lula para, ao menos, tornar o país novamente governável. Em todo caso, é bom lembrar que a maioria do povo brasileiro optou pela democracia. Esse fato inibiu o instinto golpista de policiais e militares das Forças Armadas. Lula tem consciência da gravidade dessa questão, mas nunca foi e não será fácil criar uma segurança pública cidadã.
- Para o meio ambiente em geral, para a Amazônia, haverá um freio à especulação das mineradoras?
Talvez essa seja a questão mais difícil e mais ambígua do governo Lula. Ele é um desenvolvimentista, que traz junto a inclusão social. Uma espécie de Social-Democracia ao estilo brasileiro. Então, esses setores predadores do ambiente, como o agronegócio e as mineradoras, vão continuar tendo espaço. A economia brasileira ficou muito dependente desses setores extrativistas. Mas, há um consenso que é preciso buscar uma nova industrialização no país. Há muita gente falando em um capitalismo 4.0 para o Brasil, inclusive para a Amazônia, que pensa a relação economia e o ambiente de forma diferente. No Sínodo para a Amazônia, por incrível que pareça, havia representantes dessa linha desenvolvimentista presentes no Sínodo, e um deles está na equipe de transição de Lula. Esse é para mim o maior ponto de interrogação do governo Lula.